Especialistas defendem gratuidade e alertam para risco de “colapso” do sistema de transporte público caso modelo atual continue em prática
O transporte público gratuito não é uma utopia e pode estar próximo da realidade no Distrito Federal. Quem afirma é o próprio secretário de Transporte e Mobilidade do DF, Flávio Murilo, que participou de uma audiência pública com especialistas na Câmara Legislativa para tratar do tema.
Em todo o país, 74 cidades já adotaram o modelo sem custos (veja o mapa abaixo), que pode não só ser uma opção com benefícios econômicos, sociais e ambientais, entre outros, mas também uma forma de salvar o modelo vigente atualmente em grande parte do país, que está próximo do colapso, segundo especialistas.
Nos últimos três anos, mais do que dobrou o número de cidades que adotaram a tarifa zero do transporte público. Um dos exemplos mais próximos de Brasília, com distância de apenas 79 km da capital, é o município de Formosa, um dos 10 maiores de Goiás, que implementou a tarifa zero no transporte coletivo em 2021.
“A gente pode afirmar que a tarifa zero é uma realidade concreta no Brasil. E se a gente não tomar uma medida concreta radical, podemos deixar de ter um transporte público razoável, porque esse sistema está colapsando”, alerta Daniel Santini, pesquisador, coordenador da Fundação Rosa Luxemburgo e mestrando em Planejamento Urbano e Regional na Universidade de São Paulo (USP).
Cenário da capital
Santini cita que, em Brasília, a quantidade de passageiros do transporte público por mês vem caindo de forma preocupante. “Eram 32 milhões em 2013 e caiu para 29,2 milhões em 2019, antes da pandemia. No auge da pandemia, em 2021, eram 12,7 milhões. Mesmo depois, tivemos 26,8 milhões de passageiros por mês em 2022 e 22,2 milhões neste ano”, exemplifica.
“É muito grave e preocupante. A receita cai, porque se perdeu passageiros, então a empresa aumenta a passagem ou reduz a frota. Mas isso afasta a população, e a receita cai de novo, tendo que repetir a operação. Brasília tem tentado manter esse sistema com aumento dos subsídios. Então, é uma curva para baixo de passageiros e, ao mesmo tempo, uma curva para cima dos gastos dos subsídios”, detalha o especialista.
Pesquisas de Daniel mostram que, considerando os gastos principais com as empresas, os repasses do governo do DF saíram de R$ 830 milhões em 2018 para R$ 1,4 bilhão em 2022. Ele também avalia que os contratos com as empresas de transporte público são “generosos”, pois o Estado assume o risco em caso de redução de passageiros, o que representa aumento permanente de custos com subsídios.
Caminhos para a tarifa zero
Deputados distritais do DF criaram a Comissão de Transporte e Mobilidade Urbana (CTMU), presidida por Max Maciel (PSol). O grupo, de cinco parlamentares, vem promovendo estudos e debates para aproximar a capital do país à realidade da gratuidade do sistema, como a criação da subcomissão Tarifa Zero.
Nas últimas ações, a Comissão realizou audiência pública na Câmara Legislativa, na última terça-feira (13/6), e fez visita à Prefeitura de Formosa (GO), que tem essa gratuidade e promoveu o 3º Seminário Internacional Sobre Tarifa Zero. Na audiência em Brasília, o secretário de Transporte e Mobilidade do DF disse não enxergar essa possibilidade como algo “utópico”. “É uma coisa verdadeira e está próxima, mas tem que ser muito bem pensada”, afirmou Flávio.
Na visita a Formosa, Max Maciel defendeu que “pagar pela tarifa no transporte público é uma forma de excluir os mais empobrecidos, principalmente os pretos e periféricos”. “A tarifa zero é uma maneira de diminuir essa desigualdade e garantir o acesso da população a outro direitos fundamentais, como a saúde e a educação.”
Onde já deu certo
Cidades de diferentes tamanhos e configurações já aderiram ao modelo gratuito e vêm apresentando resultados positivos. Com 368.918 habitantes, o município de Caucaia (CE) é o mais populoso a adotar a gratuidade, seguido de Ibirité (MG), com 184.030, e Maricá (RJ), com 167.668.
A cidade fluminense implementou a tarifa zero em 2014 e é a principal referência pelo volume do transporte. No ano passado, 36,3 milhões de pessoas foram transportadas nas 38 linhas disponíveis em 115 ônibus. Comparando com Brasília, que tem mais de 3 milhões de habitantes e 321 milhões de viagens por ano, Maricá ainda tem média maior de viagens por pessoa. São 104 viagens por pessoa a cada ano no DF e 216,9 em Maricá.
Para o pesquisador Daniel Santini, analisar esses exemplos pelo país mostra viabilidade econômica para a implementação. “Muitos encontraram na tarifa zero uma forma de otimizar recursos. Em vez de pagar a empresa, começar a gerenciar, estatizar o sistema, o que gera uma economia, sem aquele sistema de cobrança e controle, que também é um custo. Em Caucaia, a administração explica a gratuidade a partir de uma reorganização de contratos e gastos, e tem economia com vale-transporte para funcionários públicos, por exemplo.”
Legislação
Há discussões nacionais para tentar instituir o chamado Sistema Único de Mobilidade (SUM), como acontece com o Sistema Único de Saúde (SUS), exemplo internacional. Um dos textos legislativos que busca essa gratuidade é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 25/2023, apresentada pela deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP) e com apoio dos membros da bancada do DF Erika Kokay (PT), Reginaldo Veras (PV) e Alberto Fraga (PL).
A PEC quer acrescentar um capítulo ao Título VIII da Constituição Federal para fazer com que o transporte seja um “direito de todos e dever do Estado”, garantindo “gratuidade ao usuário do transporte público coletivo urbano e de caráter urbano”. Aguardando despacho do presidente da Câmara dos Deputados, o texto ainda não tem data para ser votado.
Na Câmara Legislativa, Max Maciel apresentou o PL 362/2023. O projeto de lei quer criar o Fundo Distrital de Transporte Público e Mobilidade Urbana (FDTPMU), que prevê uma série de medidas que podem viabilizar recursos para ajudar a custear a tarifa zero, mas também sem data para ir a plenário.